Energia e Sustentabilidade

Eletrificação é essencial, mas incentivos em vigor “são insuficientes”

Eletrificação

A eletrificação será uma das chaves para a descarbonização do Velho Continente, estando, por isso, disponíveis vários incentivos nesse sentido, desde apoios a fundo perdido a benefícios fiscais. Estas medidas são, porém, entendidas como “insuficientes”, asseguram as associações ouvidas por nós, que identificam os principais obstáculos e exemplos a seguir nesta transição.

Não restam dúvidas de que, a bem do planeta, as economias têm de mudar. Entre os países do bloco comunitário, está, por isso, já assumido o objetivo de atingir a neutralidade carbónica até ao final da primeira metade do século, sendo certo que a eletrificação poderá dar um contributo muito importante para essa transição. Em Portugal, entre subsídios a fundo perdido e benefícios fiscais, estão disponíveis incentivos para essa mudança, mas dizem as associações ouvidas pela MOB Magazine que não são ainda suficientes.
Por exemplo, cerca de 90% das vendas de veículos elétricos feitas em território nacional foram realizadas sem cobertura dos apoios em vigor, indica a DECO Proteste. “Podemos afirmar que o incentivo à compra não funcionou como gatilho para a decisão da aquisição de veículos elétricos”, argumenta a organização de defesa dos consumidores. E não está sozinha nessa leitura. O preço dos veículos e a insuficiência da rede de carregamento são outros dos obstáculos à eletrificação apontados por quem conhece o mercado. Essa transição não se esgota, por seu lado, nos automóveis, sendo importante concretizá-la nos mais diversos consumos, da climatização dos domicílios à indústria. “Existe ainda um longo caminho a percorrer”, frisa a Associação Portuguesa de Energias Renováveis (APREN).

“O principal caminho para a descarbonização”

Atingir a neutralidade carbónica até 2050 – meta traçada não só por Portugal, mas também a nível comunitário – é “tecnicamente e economicamente possível”, mas implicará uma “transformação profunda do sistema energético global”, incluindo uma aposta musculada na eletrificação. Quem o diz é a Energy Transitions Commission, organização sediada em Londres que reúne líderes, empresas e governos que estão focados no desenvolvimento das economias e, em simultâneo, na mitigação das alterações climáticas.
No relatório “Making Mission Possible – Delivering a Net-Zero Economy” (que foi publicado em meados de 2020), essa coligação sublinha que a eletrificação será mesmo “o principal caminho para a descarbonização” da economia global, servindo para neutralizar as emissões de vários setores relevantes, como a construção civil, os transportes e a indústria. A Energy Transitions Commission identifica, além disso, três prioridades para a década em curso: acelerar a implementação de soluções rumo à neutralidade carbónica, com o reforço da produção de energia limpa que permita a eletrificação da economia, criar o enquadramento político e de investimento certo – removendo os subsídios atribuídos aos combustíveis fósseis e atribuindo apoios à descarbonização –, e introduzir no mercado novas tecnologias que possibilitem a concretização de metas mais “amigas” do ambiente, mesmo nos setores onde tal transição está a ser mais difícil.
Esta organização não está, de resto, sozinha na defesa do papel da eletrificação no futuro da economia e do planeta. Também a consultora Ernst & Young (EY) entende que tal transição terá um papel relevante e, num estudo publicado em fevereiro de 2021, sugere que a eletrificação das frotas deve “liderar e dar a maior e mais rápida contribuição para a descarbonização do transporte rodoviário”.
“Embora relativamente pequeno – com 63 milhões de veículos (20% do parque total de veículos da Europa), o setor das frotas da Europa é desproporcionalmente prejudicial ao meio ambiente”, salienta o relatório “Accelerating fleet electrification in Europe: When does reinventing the wheel make perfect sense?”. De acordo com a análise da EY, as frotas são responsáveis por 40% do total de quilómetros percorridos no Velho Continente e metade das emissões associadas ao transporte rodoviário, daí a importância de ocupar a ‘cabeça do pelotão’ neste processo. “Além disso, as lições aprendidas com a aceleração da eletrificação da frota – como o desenvolvimento de modelos de negócios sustentáveis que apoiem o investimento em infraestrutura de carregamento e a integração da capacidade de carregamento inteligente –, permitirão que o mercado secundário e mais amplo de veículos de passageiros faça uma transição mais rápida. Assim sendo, este é o maior e mais impactante caso de teste”, frisa a EY.
Perante estas conclusões, e num mundo que se quer cada vez mais preocupado com as alterações climáticas, Serge Colle, global power & utilities leader da consultora em questão, defendeu: “Eletrificar o transporte é fundamental para a Europa cumprir as suas rígidas metas de emissões e criar um futuro descarbonizado. Começar pela transição da frota abrirá o caminho e gerará novas oportunidades comerciais, incluindo soluções de carregamento de veículos para a rede e veículos elétricos”.
Para o responsável, é preciso agora remover os obstáculos que se colocam à eletrificação, o que passará nomeadamente por “conquistar os corações e as mentes dos clientes através de uma variedade maior na escolha de veículos”. Uma experiência de carregamento “perfeita também é essencial”. Em Portugal, quem conhece o mercado confirma que essas matérias figuram na lista dos maiores entraves à eletrificação e nem os incentivos colocados no terreno são suficientes para solucionar a situação.

Eletrificação

Há incentivos, mas preço e postos de carregamento dificultam transição

Ciente da importância da eletrificação na descarbonização da economia, Portugal tem hoje à disposição uma panóplia de incentivos à compra de veículos elétricos. Ainda em março, perante a crise energética alimentada pela guerra na Ucrânia, o Governo de António Costa decidiu reforçá-los, mas, dizem as associações que representam os particulares e as empresas, o quadro desenhado não é suficientemente atrativo.
Convém explicar, antes de mais, que o Governo atribui aos particulares um apoio de quatro mil euros para a compra de veículos ligeiros de passageiros com as características em causa. Até aqui, essa ajuda era de três mil euros, mas o valor foi reforçado de modo a “aumentar a penetração” dos automóveis elétricos no país, explicou o ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, numa altura em que o conflito no leste da Europa provocou uma escalada dos preços dos combustíveis. Já para a aquisição de veículos elétricos ligeiros de mercadorias – tanto por particulares, como por empresas – está previsto um subsídio de seis mil euros. Por outro lado, a compra de bicicletas de carga exclusivamente elétrica é apoiada com um cheque de até mil euros, enquanto a aquisição de bicicletas, motociclos e ciclomotores elétricos dá direito a uma transferência de até 350 euros.
Além destes apoios a fundo perdido, a aposta na mobilidade elétrica passa hoje por vários incentivos fiscais. Por exemplo, os proprietários de veículos elétricos estão isentos de Imposto Único de Circulação (IUC) e de Imposto sobre Veículos (ISV). E as empresas que apostem em veículos elétricos ficam dispensadas da tributação autónoma em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), independentemente do custo de aquisição, e podem deduzir do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) não só as despesas de aquisição, mas também os valores gastos com a eletricidade usada para carregar esses automóveis.
“Os apoios que atualmente existem são, claramente, insuficientes, se queremos atingir as metas europeias”, considera, contudo, o secretário-geral da Associação Automóvel de Portugal (ACAP). Hélder Pedro adianta que tem apresentado “diversas propostas ao Governo relativamente a planos de estímulo no setor automóvel” relacionados com incentivos à aquisição de veículos elétricos, mas também com a criação de novos apoios à renovação do parque automóvel, mas continua a faltar o enquadramento adequado para esta transição.

“Os apoios que atualmente existem são, claramente, insuficientes, se queremos atingir as metas europeias de descarbonização”
Hélder Pedro, secretário-geral da ACAP

Também a Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos (UVE) diz ter proposto ao Executivo o aumento dos apoios dedicados à mobilidade elétrica. “A UVE propôs o aumento para 6.000 euros do incentivo para veículos ligeiros de passageiros e de mercadorias. Também propôs a criação de uma categoria separada para as bicicletas elétricas, por um lado, e para os ciclomotores, os motociclos, os triciclos e os quadriciclos elétricos, por outro”, revela Henrique Sánchez, presidente do conselho diretivo dessa associação.
Na mesma linha, para a Associação dos Transitários de Portugal (APAT), há uma evidente escassez de incentivos adequados. Nabo Martins, presidente executivo dessa associação, vai mais longe e declara que falta mesmo definição, a nível da União Europeia, sobre que tipos de apoios são os mais acertados, questionando se o caminho adequado será “a criação de uma taxa a aplicar sobre quem mais polui e incentivos para quem menos o faz”.
Além dessa insuficiência de apoios, há, depois, outros obstáculos à eletrificação da economia nacional, reconhecem as associações ouvidas por nós, em linha com o estudo da EY. A APAT identifica como entrave, por exemplo, o preço dos veículos. “Os veículos elétricos ainda são demasiado caros para a maior parte das pessoas e empresas”, sublinha Nabo Martins, que sinaliza também a falta de uma rede de carregamento que “permita efetuar viagens tão longas como as atuais” como outro dos obstáculos.
Hélder Pedro concorda. “No setor automóvel, existem vários obstáculos à eletrificação. Num estudo promovido pela ACAP sobre as políticas de promoção dos veículos elétricos na Europa, apurou-se que a acessibilidade económica na compra de um veículo elétrico é o principal obstáculo”, observa o responsável. Outro entrave, acrescenta, é a insuficiência da infraestrutura de carregamento público de viaturas elétricas na União Europeia. “Se se assumir um aumento exponencial na aquisição de veículos elétricos, para se atingirem as metas [de descarbonização], seriam necessários sete milhões de pontos de carregamento em toda a União Europeia, em 2030. Atualmente, existem cerca de duzentos mil”, destaca. De notar que, em Portugal, existem hoje mil pontos de carregamento rápido, super-rápido e ultrarrápido e mais de seis mil pontos de carregamento normal, segundo os dados da UVE.
O secretário-geral da ACAP atira, além disso, que outro obstáculo é a “falta de uma estratégia coesa e bem delineada, com metas e um plano de ação bem traçado de descarbonização do país”. E questiona: “Sem objetivos claros e um plano de ação, como conseguiremos atingir estas metas?”

Em contraste, a UVE defende que o “maior de todos os obstáculos” colocados à eletrificação da economia nacional são a “falta de informação e a desinformação” que alimenta determinados “mitos”. “[Há o mito de que] os veículos elétricos são muito caros, o que não corresponde à verdade, pois já existem hoje no mercado veículos elétricos quase ao mesmo nível de preço dos equivalentes com motores de combustão interna e que, muito rapidamente, amortizam essa diferença por o seu custo de utilização ser muito inferior”, argumenta Henrique Sánchez. Por outro lado, o líder da UVE diz que “os principais fabricantes de automóveis elétricos já oferecem garantia para as baterias de tração de oito anos”, criticando assim o “mito” de que as baterias “têm pouco tempo de duração e não são fiáveis”.
Obstáculos e mitos à parte, Pedro Amaral Jorge, líder da APREN, avisa: “especificamente no setor automóvel, os constantes aumentos nos preços da gasolina e gasóleo, podem começar a compensar um mais elevado custo de aquisição de um veículo elétrico, no qual se incorporam benefícios fiscais proporcionados pelo Estado português.” O responsável acrescenta que os veículos elétricos ligeiros passaram a ser a “alternativa económica e ambientalmente sustentável” e serão, deste modo, um investimento que “muitos terão condições para suportar num futuro próximo”.
A eletrificação da economia deverá passar, porém, não apenas pelos automóveis, mas também pelos demais consumos de energia, sem esquecer os domicílios e a indústria.

A eletrificação para lá dos automóveis

A importância da eletrificação da economia na transição energética não se esgota nos transportes. Nos setores doméstico e industrial, também é necessário apostar em “tecnologias cujo consumo energético não dependa de combustíveis fósseis”, realça o líder da APREN. A propósito, Pedro Amaral Jorge frisa: “apesar da relativamente elevada incorporação de fontes renováveis na geração da eletricidade, que ficou em cerca de 63% em 2021, o consumo de eletricidade representa apenas cerca de 26% do consumo final de energia. Significa isto que existe ainda um longo caminho a percorrer para promover a eletrificação dos consumos de energia no nosso dia-a-dia”.
Vamos por partes. No que diz respeito às habitações, foi lançado o Programa Casa Eficiente e o Programa de Apoio a Edifícios Mais Sustentáveis, cujos objetivos, segundo a APREN, são nomeadamente a instalação de sistemas de energia renovável para a climatização e produção de água quente sanitária, bem como sistemas de produção ou armazenamento de energia renovável para autoconsumo.
Já quanto à indústria, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) – a chamada “bazuca” europeia – destaca-se, ao reservar 715 milhões de euros para a descarbonização da indústria. “É necessário substituir equipamentos e tecnologias, alterações que trazem custos associados que grande parte da população não está preparada para suportar”, enfatiza Pedro Amaral Jorge, que sinaliza que, na indústria, a transição em causa está também a ser agora impulsionada pela subida contínua dos preços dos combustíveis.

“Tanto no setor dos transportes, como no setor doméstico e industrial, é necessário apostar em tecnologias cujo consumo energético não dependa de combustíveis fósseis, reduzindo as emissões de gases de efeito de estufa”
Pedro Amaral Jorge, CEO da APREN

Exemplos internacionais a manter debaixo de olho

Portugal não está sozinho no caminho rumo à eletrificação e há entre os países europeus exemplos a seguir, como Espanha, Noruega e Suécia. “Um país que Portugal poderia tomar como exemplo é Espanha, que mudou radicalmente a sua política em termos de sustentabilidade e renovação do parque automóvel nos últimos anos”, considera o líder da ACAP. “O melhor exemplo de transição para a mobilidade elétrica em todo o mundo é a Noruega, que avançou com um plano de incentivos e benefícios fiscais muito agressivo”, destaca, por sua vez, o líder da UVE. Já a DECO Proteste defende: “Destacaríamos a abordagem implementada na Suécia, que se relaciona com a diversificação do mix energético na mobilidade”.
No que diz respeito a Espanha, é importante explicar que foi criado um programa para apoiar a aquisição de veículos elétricos, o abate de veículos em fim de vida e o desenvolvimento das infraestruturas de carregamento, que contou com um financiamento de 100 milhões de euros em 2020 e de 400 milhões de euros em 2021, explica a ACAP. “O objetivo final [é], em 2023, haver 250.000 novos veículos [elétricos] registados, face aos 18.000 registados em 2020, um objetivo bastante ambicioso, que deveria ser tomado como exemplo pelo Governo português”, frisa Hélder Pedro, que defende que os apoios hoje disponíveis em Portugal deveriam ser cruzados com um programa de incentivos ao abate de veículos em fim de vida.
“A criação de um programa de abate de veículos poluentes, com um valor de incentivo perto do valor da diferença de aquisição entre veículos 100% elétricos e de combustão, deveria ser implementado”, concorda a DECO Proteste, que considera que os apoios hoje em vigor não funcionam “como gatilho” à compra, sendo, portanto, desadequados. Por outro lado, para esta organização, o exemplo a seguir deveria ser o sueco, já que o mix energético aí implementado (com o uso de biogás) tem conquistado “uma escala interessante e distinta do que acontece noutras geografias, demonstrando que é possível ter opções diferenciadas no caminho da descarbonização”.
Outro país do norte da Europa em destaque é a Noruega, país que associou os veículos elétricos à isenção do IVA, ao estacionamento gratuito com carregamento gratuito nas grandes cidades e a portagens gratuitas nos ferryboats e nos túneis. “Este plano extremamente agressivo permitiu à Noruega ter uma quota de mercado de venda de veículos elétricos novos de cerca de 95%, estimando o Governo norueguês que o último automóvel com motor de combustão interna seja vendido já em abril de 2022, mês a partir do qual já só se venderiam veículos elétricos na Noruega”, sublinha o líder da UVE.
Por cá, os veículos elétricos têm menor expressão, mas tem conquistado terreno a consciência de que a eletrificação será determinante para o futuro, não obstante os obstáculos.

Eletrificação

“[O seu] plano extremamente agressivo permitiu à Noruega ter uma quota de mercado de venda de veículos elétricos novos de cerca de 95%, estimando o Governo norueguês que o último automóvel com motor de combustão interna seja vendido já em abril de 2022”
Henrique Sanchéz, presidente do conselho diretivo da UVE

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